Bandeirantes/MS, 16 de junho de 2024

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Candidatos de medicina gastam até R$ 18 mil para conseguir Fies na Justiça, mesmo sem nota suficiente no Enem; entenda riscos

Em Colmeia (TO), os pais de Isadora de Sousa, de 18 anos, pagaram R$ 7,5 mil a um escritório de advocacia para que a jovem tivesse a chance de estudar medicina pelo Sistema de Financiamento Estudantil (Fies).

Ela não havia cumprido o pré-requisito de atingir a nota de corte no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), mas o advogado contratado prometeu que, por meio de uma “brecha” na legislação [entenda mais abaixo], Isadora poderia financiar as altas mensalidades do curso sem depender de seu desempenho na prova.

“Disseram que ia ser ‘causa ganha’ e que eu poderia me matricular na faculdade, porque teria o financiamento dali a no máximo três meses”, conta Isadora.

“Bateu um medo, porque o semestre custava R$ 80 mil. Bom, seis meses se passaram, meu pai se matando para pagar meu curso… e perdemos a causa na Justiça. Tive de trancar a faculdade, porque não temos mais como arcar [com as despesas]. Estou traumatizada — me prometeram algo que era, na verdade, incerto.”

➡️Qual é a tal “brecha” na legislação? Em resumo: a lei que criou o Fies, em 2011, não mencionava o Enem como critério de seleção para o financiamento. Essa regra de considerar as notas da prova só passou a valer em 2015, após uma portaria do Ministério da Educação (MEC).

Diante disso, desde 2020, advogados passaram a defender a ideia de que, como leis “valem mais” do que portarias, nenhum aluno pode ser barrado só porque não teve um bom desempenho no exame.

Cobrando até R$ 18 mil, escritórios de advocacia começaram a processar a União, a Caixa Econômica Federal (que opera o Fies) e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), reivindicando o financiamento para os clientes.

👨‍⚖️Resultados divergentes: Já houve situações em que candidatos conseguiram uma vaga no Fies com base nessa teoria, por meio de liminar – mas, na maioria das vezes, a história acaba em frustração e em mais dívidas. A Justiça, em geral, afirma que a portaria do MEC deve, sim, ser respeitada, e que liberar o financiamento para tantos alunos seria impossível do ponto de vista orçamentário.

➡️Maré de processos: Segundo o MEC afirmou, só entre janeiro e fevereiro de 2023, mais de 600 brasileiros entraram com processos judiciais pedindo que fossem aprovados no Fies mesmo sem terem alcançado a nota necessária no Enem. Não há um balanço de quantos pedidos foram deferidos (ou seja, “deram certo”).

  • Foi uma “chuva” tão grande de processos – movidos especialmente por candidatos aos cursos de medicina –, e com tantos posicionamentos diferentes de juízes e desembargadores, que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) deve decidir, até o fim do ano, uma resposta única para todos os casos (pelo chamado Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR) .
  • Até lá, os estados dessa jurisdição (AC, AP, AM, BA, GO, MA, MT, PA, PI, RO, RR e TO, além do DF) ficarão com as decisões “congeladas”.

Há advogados que apresentam uma perspectiva mais realista e explicam ao cliente, desde o início, que pleitear uma vaga do Fies por liminar pode funcionar, mas envolve um alto risco de perder o processo, dependendo da interpretação da Justiça. Outros especialistas, porém, fazem propaganda nas redes sociais (“vaga de medicina já!!”) e garantem — de forma irresponsável — que haverá sucesso.

Márcia*, mãe de uma aluna que há anos busca uma forma de cursar medicina, quase acreditou em uma dessas promessas. “O primeiro escritório com que conversei disse que era certeza de sucesso. A sorte é que falei com outra advogada antes e soube que era algo incerto. Eu não poderia abrir mão de R$ 5 mil [valor cobrado para entrar com o processo], por mais que fosse o sonho da minha filha. Fiquei com muito medo”, diz.

Nesta reportagem, entenda:

  • os detalhes da tal “brecha” na legislação e por que, em casos pontuais, ela já foi capaz de dar uma vaga no Fies para quem não cumpria os pré-requisitos do programa;
  • por que a maioria dos juízes e desembargadores não concede o Fies nessas situações;
  • quais os riscos de buscar uma vaga por via judicial.

🖊️Mas o Enem não é obrigatório para quem busca o financiamento?

Em tese, sim. Quem quiser pleitear esse “empréstimo” para pagar as mensalidades de uma faculdade privada precisa ter:

  • renda familiar per capita de até 3 salários mínimos;
  • nota superior a 450 pontos (média geral) nas questões do Enem e maior do que zero na redação.

Dependendo do número de inscritos para determinado curso/universidade, é calculada uma nota de corte para selecionar quem será aprovado (priorizam-se os melhores desempenhos, especialmente de quem ainda não fez faculdade). As graduações em medicina são as mais concorridas.

🤔Em que se baseia essa tentativa de conseguir a vaga sem o Enem, então?

Como citado no início da reportagem, desde 2020, escritórios de advocacia vêm apresentando uma teoria para embasar essa reivindicação: reforçam que a lei que criou o Fies, em 2011, não menciona o Enem entre os critérios de exigência. A necessidade de prestar o exame e atingir determinado desempenho só passou a existir em 2015, por meio de uma portaria criada pelo MEC.

“Uma portaria não tem poder superior à lei federal. E outro ponto: depois que um país cria acesso a um direito social, não pode retroceder. Seria o mesmo que criar o SUS e depois passar a cobrar pelos serviços”, afirma o advogado Henrique Rodrigues, responsável por um dos primeiros casos em que um aluno conseguiu o financiamento via judicial.

“Por isso, se move uma ação contra o MEC, o FNDE e o governo federal [para pleitear a vaga via judicial].

Por outro lado, o MEC e instituições de ensino superior explicam que as regras que introduziram o Enem no processo seletivo do Fies existem justamente para dar sustentabilidade financeira ao programa. Seria impossível, segundo eles, dar uma vaga e uma oportunidade de financiamento a todos os alunos inscritos.

“Esse tipo de judicialização quebra a lógica da política de ingresso na educação superior e gera uma competitividade desleal em relação ao aluno que se esforçou e prestou o Enem. Quem vai atrás de advogado para conseguir a vaga está furando a fila”, afirma Bruno Caetano, consultor jurídico da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes).

Em um dos casos nos quais a vaga foi negada, o Superior Tribunal de Justiça manifestou preocupação a respeito da “real probabilidade de haver sério comprometimento da viabilidade econômico-financeira do Fies, dado o crescente número de medidas de natureza liminar que têm reconhecido direito a estudantes que, de acordo com as normas vigentes, não o teriam”.

E há mais uma consequência temida por quem se opõe à via judicial para conseguir o Fies: em alguns casos, a Justiça concedeu não só o financiamento, mas também a vaga para um estudante que sequer estava matriculado em uma instituição de ensino. “Acaba se formando um excedente em relação ao número [de alunos] planejado inicialmente. Isso impacta a organização das atividades práticas e dos estágios”, explica Caetano, da Abmes.

🔴‘Meu pedido foi indeferido, e estou devendo R$ 60 mil’

Larissa Valença, de 21 anos, havia sido aprovada em medicina em uma faculdade privada de Olinda, mas não conseguiria bancar as mensalidades – a única alternativa, segundo ela, seria financiar o curso pelo Fies e pagar as parcelas depois da formatura.

Só que, com a nota que a jovem havia tirado no Enem e com a renda de sua família, ela ficaria fora do processo seletivo.

“Liguei para uma advogada, e ela me explicou que eu nem precisaria pagar a primeira mensalidade, porque a decisão judicial [que concederia o Fies] sairia em questão de 15 a 20 dias, antes da emissão do boleto”, lembra a jovem.

Segundo Larissa, a profissional ainda sugeriu que a aluna apresentasse apenas o comprovante de renda da mãe – e omitisse o do pai, para não ultrapassar o limite de renda do Fies.

Os tais 20 dias de prazo se passaram, mas a família de Larissa não recebeu nenhum retorno.

“Começou a me bater um desespero, porque eu já estava até fazendo prova na faculdade. Na metade do 1º período [do curso], ficava vendo meus boletos vencendo, e nada de me falarem da decisão. A advogada pediu mais tempo e disse que nunca tinha perdido um processo deste”, conta Larissa.

Só que, dois meses depois, em uma busca na internet, a jovem descobriu que o caso havia sido julgado como improcedente. “[No escritório], sabiam que o juiz tinha negado, porque até entraram com recurso, mas não me avisaram.”

Pelas regras da faculdade, ela não  pôde sequer trancar a matrícula, porque tinha cursado apenas um semestre.

“Tive de abandonar o curso e voltar a estudar para o Enem. Só que estou devendo R$ 60 mil [todas as mensalidades não pagas]. Sou muito nova para uma dívida dessa. Medicina é um sonho, tentei por 3 anos, só passei a respirar quando fui aprovada. Agora, parece que parei de respirar de novo.”

🔴‘Já vendi brigadeiro e rifa para me manter’, diz estudante de medicina que trancou curso no 8º período

Everton Delgado, de 32 anos, trancou o curso de medicina porque não conseguiu o financiamento — Foto: Arquivo pessoal

Everton Delgado, de 32 anos, trancou o curso de medicina porque não conseguiu o financiamento — Foto: Arquivo pessoal

Everton Delgado, de 32 anos, já era formado em direito, mas queria estudar medicina.

Depois de ser aprovado em uma faculdade privada, começou a pagar as altas mensalidades, na esperança de, em algum momento, conseguir uma vaga no Fies. No entanto, como o programa prioriza os candidatos que ainda não têm diploma, Everton ia automaticamente para o fim da fila.

“Por quatro anos, paguei mais de R$ 8 mil por mês [na universidade], com a ajuda da família inteira, cada um dando um pouco. Só que tivemos problemas financeiros e não conseguimos mais”, diz Everton.

Foi aí que, em julho de 2023, ele tentou a via judicial para conseguir o financiamento. Mas:

  • A liminar (que é a ordem provisória, tomada logo no início do processo por um juiz) foi negada.
  • Depois, no tribunal, os desembargadores proferiram a sentença: também negativa.
  • Agora, Everton aguarda a decisão final, após recorrer e entrar com recurso no Superior Tribunal de Justiça.

“O advogado foi muito sincero comigo e me avisou dos riscos. Mas eu quis tentar”, diz. “Tranquei o curso. Estou fazendo bico até conseguir achar uma solução. Já vendi brigadeiro e rifa para me manter.”

🔴‘Não me avisaram que os processos estavam congelados’

Patrícia Campos, de 37 anos, é formada em nutrição e, para mudar de carreira, prestou vestibular para medicina. Foi aprovada, mas não sabia se conseguiria bancar as mensalidades até o fim do curso. Quando viu a live de um influenciador no Instagram, descobriu que poderia tentar uma vaga no Fies por via judicial.

“Minha faculdade nem tem contrato com o Fies, mas o advogado disse que a liminar poderia sair em 15 dias, e aí, eu poderia escolher outra [instituição de ensino] e me matricular. Paguei R$ 3 mil logo de cara, mas nada de vir um resultado”, conta.

“Três meses depois, entrei em contato e descobri que a liminar tinha sido negada.”

Patrícia mora em Goiânia, que faz parte do TRF-1 – como explicado no início da reportagem, todos os processos de Goiás (e de outros estados que estão no mesmo “guarda-chuva”) estão paralisados. A decisão provisória até pode ser emitida pelo juiz, mas a definitiva só sairá depois que o tribunal chegar a um consenso geral sobre o assunto.

“Ninguém me avisou disso. Me venderam uma falsa esperança, porque sabiam que estava tudo bloqueado. Caí em um conto de fadas”, diz.

🔴Liminar x sentença: e se as respostas forem diferentes?

O advogado Henrique Rodrigues explica que é possível haver divergências:

  • SITUAÇÃO 1: não conseguir a liminar (ordem provisória do juiz, que precisa ser cumprida rapidamente), mas “vencer” na sentença (por decisão dos desembargadores) e garantir o Fies.

Foi o caso de Nicole Arbex, de 20 anos, que não atingiu nota suficiente no Enem para ser aprovada em medicina nas instituições federais. Por poucos pontos, também não passou no Prouni ou no Fies.

Na Justiça, ela tentou pleitear o financiamento com o argumento de que a lei original do programa não mencionava a prova como critério de seleção. O juiz, no entanto, negou a liminar. Depois, em segunda instância, a sentença dos desembargadores foi positiva, e Nicole pôde iniciar os trâmites do Fies.

“Foi bastante conturbado e cansativo, mas é uma luta por algo que era meu de direito. O custo inicial do processo é pesado, mas, se der certo, vale a pena”, diz.

  • SITUAÇÃO 2: ganhar a liminar, mas depois “perder” na sentença e ficar sem o financiamento.

O perigo, nesta segunda hipótese, é o aluno usar a liminar para já começar a estudar, mesmo antes de sair a sentença final. Nesse intervalo, ele estará assumindo uma dívida sem a garantia de que realmente terá o financiamento garantido até o fim do curso. Se o desembargador, meses depois, indeferir o pedido, o estudante perderá o Fies e terá de pagar as mensalidades anteriores.

Esse é o temor de Júlio*, de 29 anos, que conseguiu o Fies via liminar em 2022.

“Depois de 6 meses e com muita burocracia no MEC, assinei o contrato e comecei a estudar. Mas, desde então, tenho muita dificuldade para fazer os aditamentos [renovações], porque o TRF-1 derrubou minha liminar duas vezes já. Hoje, meu processo está em julgamento final. Não sei se vou continuar estudando”, conta.

“Se derrubarem minha liminar, fico sem estudar e com uma dívida que eu não tinha antes. Nem sei de quanto. É tudo muito incerto neste processo, porque os julgamentos variam de um desembargador para outro. Fico triste, porque quem é de baixa renda e não recebeu ensino de qualidade tem cada vez mais dificuldade de conseguir o Fies. Mesmo com tudo isso, não me arrependo da via judicial. Era minha esperança.”

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