Em um viés comportamental, o que acontece na cabeça do cliente que chega, revira tudo e, em questão de horas, desmonta uma loja inteira?
Falamos do triste problema no Centro de Campo Grande, que atinge lojistas e se explica em fatores como alto aluguel, resquícios da pandemia, abandono da região e até o aumento do fluxo de moradores em situação de rua, o que resulta no fechamento das portas, do pequeno ao grande, como é o caso da megaloja que anunciou a liquidação de sete mil itens pela metade do preço.

Agora, em um viés comportamental, o que acontece na cabeça do cliente que chega, revira tudo e, em questão de horas, desmonta uma loja inteira?
A reportagem do Jornal Midiamax, logo após a matéria, soube que a clientela foi chegando rapidamente, e o gerente disse que, em questão de horas, vendeu tudo o que seria comercializado no decorrer de toda a semana.
Boa notícia? Sim, até certo ponto. Muitos que foram ao local reviraram tudo caçando descontos, pisotearam produtos, e os funcionários trocaram as horas de descanso por horas a fio reorganizando prateleiras.
Adiantou? Pouco, já que, no outro dia, a desordem vira lei no caso de quem procura um bom preço, mas não está nem aí para o coletivo.
Cérebro interpreta como ‘chance única de ter algo valioso’
A neurocientista comportamental, especialista em psicologia positiva, mindfulness e neurobiologia das emoções e do dia a dia, Adriana Fernandes, de 47 anos, que atua com palestras e treinamentos sobre comportamento humano, motivação e tomada de decisões, ressaltou que este tipo de comportamento é uma resposta típica do nosso cérebro diante do que chamamos de escassez percebida e gatilho de recompensa imediata.

“Quando uma loja anuncia que vai fechar e liquidar tudo, o cérebro interpreta isso como uma chance única de obter algo valioso e aciona o sistema de recompensa, liderado pela dopamina.
“Esta substância não é só o neurotransmissor do prazer, ela também alimenta a motivação por antecipação. Ou seja, só de imaginar o ganho, como pegar um bom desconto ou levar algo com a impressão de ser de graça, o cérebro já se excita”, inicia Adriana.
Desta forma, a especialista fala em um comportamento impulsivo, muitas vezes irracional, que é reforçado pela presença de outras pessoas fazendo o mesmo.
“É aí que entra o que chamamos de contágio emocional e comportamento de manada. Ver todo mundo correndo, pegando produtos, disputando espaço, gera um senso de urgência e medo de ficar de fora, como se o cérebro entendesse ‘se eu não agir agora, perco’, e deixa de lado a lógica ou o cuidado com o espaço, virando uma ação quase automática”, explicou.
‘Bagunça fala muito sobre a pessoa’, opinam clientes

“Eu vim de Corguinho para aproveitar esta liquidação e não imaginava encontrar a loja assim. Foi a primeira coisa que eu percebi, tudo revirado. Por acaso, achei os baldes que queria, mas tudo sem preço, nem nada. Acho que o povo tira tudo fora do lugar e não tá nem aí”, comentou a vendedora autônoma Amanda Riveros, de 66 anos.
Conforme Amanda, as pessoas demonstram até o seu “nível de cultura” quando se comportam desta maneira. “A bagunça demonstra muita coisa sobre uma pessoa. Não é preciso ter um alto nível de educação, só precisa ser educado, e isso é bem diferente”, opinou.
A turismóloga Vânia Viana, de 42 anos, concorda e diz que é necessário pensar antes de agir desta forma. “A gente chega e já encontra tudo remexido, não acha o preço mais, porque eles [clientes] tiram do lugar. E eu gosto de comparar preços, pesquisar o melhor, mas fica impossível desse jeito”, lamentou.
‘Na multidão, indivíduo tende a perder a consciência totalmente’, explica neuropsicóloga

Neste sentido, os gatilhos de escassez e de urgência são ativados com essas liquidações que usam o marketing, justamente para que seja assim, e as pessoas, facilmente, vão às compras. Com a pessoa envolvida nas multidões, ocorre então a desindividualização — nome dado pela psicologia social.
“Ele [indivíduo] tende a perder a consciência totalmente, dos seus próprios limites morais e comportamentais, também, se sentindo parte de um grupo anônimo. E aí, o que que acontece? Ele fica livre para agir impulsivamente, sem medir consequência nenhuma, está ali, no meio do grupão, então, age como o grupo age, gerando um efeito de contágio emocional, no caso destas pessoas que reviram, destroem, derrubam as prateleiras, deixam a roupa no chão e pisam em cima”, comentou a psicóloga e neuropsicóloga Wanessa Fernandes.

‘Entusiasmo coletivo pode fazer pessoas ficarem descontroladas e até agressivas’, diz especialista
Ainda neste sentimento de “entusiasmo coletivo”, as pessoas podem se tornar ainda mais eufóricas, descontroladas e até ficarem agressivas.
“E tem o outro lado também, que a gente precisa compreender, embora este comportamento seja extremamente inadequado para pessoas civilizadas, eles não acontecem por acaso, porque se a loja, se tem a ausência de organização no ambiente, se não conseguem controlar o fluxo, com a presença de seguranças, por exemplo, cria o terreno para as pessoas terem esta impulsividade coletiva, então, também tem que organizar o ambiente”, ponderou Fernandes.
Por fim, a profissional qualifica este e outros momentos de tumulto como uma “desregulação emocional coletiva”, algo também alimentado pela ansiedade, imediatismo e a falta da estrutura social do local, o que não justifica o excesso das pessoas, mas, sim, podem ser fatores a serem analisados para planejar ações do tipo.
“Uma promoção gigante assim também pede uma consciência social mais responsável e empática, porque senão vira uma manada de sobrevivência, de tudo o que já falamos”, finalizou Wanessa.
